Escritas e sons do silêncio numa conversa rumo à Quaresma com Tolentino Mendonça (foto)
Traduz por palavras as experiências da pessoa humana. Poeta e biblista, José Tolentino Mendonça faz a descoberta da Páscoa, pelo silêncio.
Agência ECCLESIA (AE) – Através do silêncio fazemos um caminho no deserto para encontrar o oásis pascal?
Pe. Tolentino Mendonça (TM) – É curioso olhar para o significado da palavra deserto. Em hebraico, deserto diz-se «midbar». Pode significar “lugar solitário”, mas também “eu falo”. O deserto, ao mesmo tempo, é o lugar do silêncio e é o lugar de uma palavra que esse silêncio guarda. Com a aproximação da Quaresma, a Igreja é chamada a uma experiência de deserto. É uma experiência penitencial, de conversão e de revisão de vida. Nesse despojamento experimentado e voluntário, a Igreja deve redescobrir a palavra que, em silêncio, incessantemente é dita por Deus.
AE – Então este silêncio quaresmal prepara a alegria pascal?
TM – O Profeta Oseias diz: eu vou levar-te ao deserto para falar-te ao coração. Esta passagem pelo deserto implica levar muito a sério a condição humana. O efeito da fé, em nós, não é automático. É uma construção. Os cristãos estão em construção. A Igreja está em construção. O tempo quaresmal diz-nos que estamos em obra, estamos num fazer-se e num tornar-se. Para que tal se concretize precisamos de re-orientar e converter a nossa vida.
Na tradição bíblica, a imagem do deserto está muito ligada à itinerância. Aqueles quarenta anos que o povo caminhou... Vamos ao deserto não para nos instalarmo-nos nele, mas para fazermos dele um caminho para essa novidade pascal. Para a grande alegria do Cristo, Homem Novo.
AE – É um «Sei que estou em viagem na palavra que se move» como disse o poeta Daniel Faria?
TM – Os cristãos estão no caminho. No entanto, é preciso estimular a nossa vida instalada e a própria Igreja instalada. A Quaresma é um tempo de grande estimulação para a itinerância. Não nos podemos esquecer que Jesus diz-nos: “Bem aventurados os sedentos”. Há uma sede e fome que é necessário re-aprender... Quem tem sede é que será saciado.
AE – Este tempo litúrgico é o oceano do silêncio.
TM – É uma grande viagem pelas ondas do silêncio... Como etapa provisória, a Quaresma não é um lugar, mas tempo de preparação. O definitivo é a Páscoa... A Quaresma é instrumental, mas é uma viagem necessária porque necessitamos de desprendermo-nos das amarras, dos bloqueios e dos comodismos. Só assim, conseguimos o coração novo que a Páscoa celebra.
AE – O silêncio oblitera os ruídos e bloqueios da sociedade?
TM – Ele é necessário para fugirmos ao nosso próprio ruído. O grande ruído não está na cidade, mas aquele que nós transportamos... É ressonância confusa que as coisas deixam dentro de nós. A Páscoa é um tempo de discernimento. É um tempo para treinar os sentidos. Com a Páscoa sentimos o perfume da vida. Escutamos a Palavra, como se fosse a primeira vez... Saboreamos o sentido profundo.
A Quaresma é um vitória sobre o ruído
AE – O lado anestésico do quotidiano deixa-nos tocar nessas profundezas?
TM - A Quaresma é uma vitória sobre o ruído que possibilita a Palavra inédita: a mensagem sobre o sepulcro vazio.
AE – O silêncio sente-se?
TM – Ele sente-se porque não é apenas ausência do ruído. Ele não se define pela negativa, mas pela positiva. O silêncio é o lugar da comunicação.
AE – É contemplação e comunicação?
TM – Basta observarmos os monásticos. O silêncio não é a privação da palavra, mas um caminho alternativo de intensa comunicação e escuta. O silêncio é um lugar...
AE – Que ajuda na conversão.
TM – É verdade. O silêncio é muito exigente. Se o mundo - à nossa volta e dentro de nós - é tão ruidoso é porque isso é muito mais cómodo. É mais fácil aguentar a palavra e o rumor do tempo do que se confrontar com o silêncio. Este tem uma verdade nua e sem véus. O confronto com o silêncio obriga a uma conversão. Obriga-nos a uma transformação que dói.
AE – É a matriz evangélica.
TM – Profundamente evangélica. Jesus – na forma de rezar e na preparação das grandes decisões – procurava o silêncio. Procurou o nível de comunicação mais profunda com o Pai.
AE – Os evangelhos são fruto do silêncio?
TM – Os evangelhos são uma poética do silêncio. Eles resultam de uma contemplação do mistério de Jesus Cristo.
AE – Que evangelista absorveu melhor a novidade silenciosa?
TM - É difícil dizer porque são quatro vozes distintas. De certa forma, são incomparáveis. No entanto, S. João tem um ritmo de escrita e uma forma de contar Jesus que nos endereça, continuamente, para o mistério e para o seu silêncio. O Evangelho de Marcos também está muito atento às dinâmicas do silêncio que é revelação. É conveniente lembrar a história rabínica que diz: “No fim dos tempos – quando o Messias voltar -, Ele não vai apenas explicar o sentido das palavras escritas mas explicará, também, o silêncio dos espaços em branco que existem entre as palavras”. Todos os evangelhos têm espaços em branco...
AE – A degustação do silêncio é a Ressurreição?
TM – Só quem degusta o silêncio – decantado pelo mistério pascal – pode verdadeiramente ressuscitar. O atordoamento do ritmo que se vive leva-nos a um grande afastamento. Por isso, a Quaresma é um reencontro marcado com o silêncio e com a luz que brilha com esse silêncio.
AE – É um rastilho que provoca um fogo pascal.
TM – Sem o itinerário quaresmal a Páscoa é apenas um rito, uma memória. Os cristãos são chamados a sentirem nas suas próprias vidas esse trânsito inesperado, mas que Jesus possibilita, da morte para a vida.
AE – Que começa com o pó de Quarta-Feira de Cinzas.
TM – Esse austero sinal que abre o itinerário quaresmal é extremamente importante. Obriga-nos a relativizarmo-nos a nós mesmos e coloca-nos em relação com um projecto maior que o nosso. Obriga-nos a calçarmos as sandálias dos peregrinos e tomarmos o coração dos sedentos. As cinzas convidam-nos a um grande silêncio interior.
AE – Depois desse período escuro encontra-se a primeira nascente.
TM – O mapa dado pelas cinzas conduz-nos à fonte pura.
AE – Os períodos de silêncio na Eucaristia também são momentos de diálogo com essa fonte pura?
TM – A Eucaristia salva e transfigura o próprio mundo. Mesmo celebrada entre quatro paredes apertadas, a Eucaristia é a exalação desse imenso silêncio.
O habitat do silêncio nas Palavras de Jesus
AE – Quando Jesus diz: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34), estas palavras nascem desse silêncio dialogante?
TM – A oração é algo de constante na vida de Jesus. Ele é um orante. O Evangelho de Lucas privilegia esse traço da vida de Jesus. Mostra-nos, por diversas vezes, Jesus a orar. Para orar, o silêncio é o habitat... É o meio vital. Lucas apresenta-nos, muitas vezes, no silêncio em diálogo com o Pai.
AE – Apesar desse diálogo orante, Jesus diz em Mateus 28, 46 «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?
TM – É interessante a forma como um exegeta francês contemporâneo defende que se traduza essa frase. Está relacionada com o modo como a tradução grega dos Setenta traduz o Salmo que Jesus reza na cruz. Ele propõe que se traduza: «Meu Deus, Meu Deus, a que me abandonaste». Não é apenas a interrogação de um destino que Jesus não entende, mas é também a explicitação de um mistério, de um destino, que engloba tudo aquilo que Jesus é e todo o projecto de Deus para a nossa salvação.
AE – «Tenho Sede!» (Jo 19, 28). É uma exclamação que deriva desse mistério silencioso?
TM – Só quem bebe da fonte do silêncio ganha essa sede. É uma sede do desejo e da entrega completa nas mãos do Pai. É uma das frases mais extraordinárias de Jesus.
AE – Por isso diz «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23, 46)» e «Tudo está consumado (Jo 19, 30)»
TM – Esse sentido de completude da vida supõe que o silêncio que nós somos mergulha no oceano do silêncio do mistério de Deus. Essa é a consumação. O silêncio no silêncio.
Como diz um poeta chinês: «O branco no branco»
AE – Depois desse «branco no branco» e da escada quaresmal aparece a vitória?
TM – Há uma vitória e uma Boa Nova. Há uma palavra inédita e original. Há a maior surpresa. Devido a isto, os cristãos são povo da manhã e do primeiro amanhecer. Celebramos o primeiro dia porque essa surpresa é o referencial que desloca o mundo. Nós organizamos o mundo a partir do primeiro dia da semana. Somos o povo do início.
AE – E acordamos «Com as narinas a sangrar um perfume (Daniel Faria)»
TM – Gosto da imagem do perfume porque é o símbolo da intensidade invisível. Na história, os cristãos sentem que o invisível está presente e se inscreve no provisório do tempo numa forma definitiva.
AE – Existem profissões do silêncio?
TM – As profissões ligadas à natureza são as menos mecânicas. São aquelas que se ligam ainda a uma lentidão. O silêncio é uma coisa lenta.
A grande tentação dos poetas é o silêncio
AE – Poesia e silêncio são dois conceitos interligados?
TM – A poesia é uma forma de escuta e de atenção. O silêncio é a metodologia de todos os poemas que se escrevem. A grande tentação dos poetas é o silêncio. A poesia exige uma vida tentada pelo silêncio. É uma forma de comunhão. A poesia não quer suprir o silêncio nem explicá-lo.
AE – Então o silêncio é o embrião da poesia...
TM – É embrião e o porto último. É a meta de todos os versos que se escreveram.
AE – Em estado poético voa-se na interioridade das palavras.
TM – Na poesia tenta-se – como se fosse a travessia das águas – atravessar sem ferir o mar. Para que no sossego das águas possamos ver o fundo, mas nem sempre isso é possível.
AE – Sendo duma localidade marítima (Machico – Ilha da Madeira), atravessa esse mar sem lhe tocar quando escreve poemas?
TM – A relação com o mar, e esse mundo que está ainda próximo duma linguagem original – antigas profissões, a ligação à terra e ao mar e a tradição oral -, suscita-me uma certa gramática do olhar.
AE – Depois dessa gramática do olhar nasce o azul poético?
TM – A poesia nem sempre é azul. Às vezes é escura e cerrada. A poesia não é um saber nem uma áurea. Não é um esplendor. Muitas vezes é uma noite escura. No entanto, a contemplação do mundo pede-nos uma procura.
O silêncio não tem cor
AE – O silêncio dessa contemplação é cromático?
TM – O silêncio não tem cor. Nós é que precisamos dessas cores. O silêncio é a vida nua... É a verdade. No entanto, precisamos da linguagem simbólica para viajarmos até à verdade.
AE – Um filósofo disse: «O poeta é o génio da recordação». Podemos afirmar também que o poeta é o génio da palavra nascida do silêncio?
TM – O poeta sabe que precisa de ouvir o silêncio.
AE – O misticismo é fruto do silêncio?
TM – A mística é uma experiência radical de silêncio. Uma das etimologias da palavra místico quer dizer fechado, estar trancado. A experiência mística é uma experiência de concentração.
AE - Eugénio de Andrade, Sophia Mello Breyner, Camilo Pessanha, Daniel Faria, Agostinho da Cruz e S. João da Cruz, poetas que ouviram o silêncio e deram-lhe voz. Destes, qual é o verdadeiro poeta do silêncio?
TM – Para mim o maior poeta e aquele que mais leio é S. João da Cruz.
AE – Miguel Torga percorria os trilhos do Gerês e da sua terra natal para absorver melhor o silêncio da natureza.
TM – Nós sentimos muito esse apelo: um regresso à natureza. A vida artificial e do ar condicionado é uma vida anti-espiritual. A vida do espírito é uma vida lenta e exige uma digestão. Ela exige o reencontro com os caminhos, com os baldios e com o mar aberto.
AE – Herberto Hélder via esse mar aberto constantemente?
TM – É um poeta de uma dimensão extraordinária. Herberto é um grande artífice do silêncio na poesia portuguesa contemporânea.
Cada um de nós tem a sua serra
AE – Sebastião da Gama e Agostinho da Cruz descobriram esse valor na Serra da Arrábida. Esta é a serra mãe para saborear a pausa silenciosa da vida?
TM – Na tradição portuguesa, a Serra da Arrábida é um lugar muito especial. Nesta serra encontramos tópicos da geografia do silêncio. Cada um de nós tem a sua serra onde encontrará o silêncio matricial.
AE – Também tem uma serra?
TM – Nas montanhas da Madeira ou junto ao mar, de qualquer lugar do mundo. Aí encontro uma certa qualidade de silêncio que me toca.
AE – O mar é ruidoso...
TM – O silêncio não é uma ausência. É a presença plena, inteira e intacta do mundo.
AE – Depois nasce a obra?
TM – Não nasce a obra. Nascemos nós. Mais importante do que a obra, mais importante do que o fazer é o ser. Nascemos... Estamos em nascimento, em dores de parto.
Pintar o silêncio
AE – Os pintores conseguem pintar o silêncio?
TM – Muitos pintaram-no. Fontana pintava o silêncio fazendo rasgões no cromatismo da pintura. Outro artista pintava o silêncio em grandes telas monocromaticamente (apenas com uma cor). Piero della Francesca pintava o silêncio através de personagens inesquecíveis. A forma como pintava o tempo dos personagens. O silêncio não se fixa.
AE – Não se fixa, mas conduz o pincel do pintor?
TM – O silêncio é o fio secreto que conduz todas as procuras de sentido. Podem ser artísticas, intelectuais, pastorais ou orantes. No fundo, a verdade é só uma. A verdade de um grande pintor é a mesma de um mestre da fé. É a verdade do grande mistério que nos coloca perante o silêncio de Deus.
AE – Há uma preparação específica para encontrar este fio misterioso?
TM – Na Quaresma, a Igreja recorda três caminhos: Jejum (relativização das reivindicações do nosso eu ); oração (escuta radical) e esmola (caridade). Muitos encontram o silêncio nesta forma porque nós não somos o centro do mundo.
AE – Depois deste caminho nasce a obra.
TM – O caminho quaresmal conduz-nos de facto a essa possibilidade da dança. Da dança dos eleitos. É essa alegria que vemos na célebre pintura de Frei Angélico, «A Roda dos Eleitos». Os anjos músicos e os eleitos com vestes maravilhosas celebram a alegria do Ressuscitado.
Bach falou com Deus
AE – A música ouve-se em silêncio ou transmite o silêncio?
TM – A música é uma poética do silêncio porque reconduz o nosso coração e a nossa atenção a um ponto nuclear.
AE – Numa orquestra existe o instrumento musical do silêncio?
TM – O instrumento do silêncio é o coração.
AE – No entanto, a harmonia sinfónica de alguns instrumentos musicais faz-nos entrar no mistério silencioso. Ouve-se o silêncio...
TM – Há compositores muito interessados em trabalhar esse silêncio. Só assim aparece a revelação.
AE – Qual o grande compositor que deu voz ao silêncio?
TM – Há um cineasta russo que afirma que Bach foi o último artista que falou com Deus. Não sei se foi o último, mas Bach falou com Deus.
Traduz por palavras as experiências da pessoa humana. Poeta e biblista, José Tolentino Mendonça faz a descoberta da Páscoa, pelo silêncio.
Agência ECCLESIA (AE) – Através do silêncio fazemos um caminho no deserto para encontrar o oásis pascal?
Pe. Tolentino Mendonça (TM) – É curioso olhar para o significado da palavra deserto. Em hebraico, deserto diz-se «midbar». Pode significar “lugar solitário”, mas também “eu falo”. O deserto, ao mesmo tempo, é o lugar do silêncio e é o lugar de uma palavra que esse silêncio guarda. Com a aproximação da Quaresma, a Igreja é chamada a uma experiência de deserto. É uma experiência penitencial, de conversão e de revisão de vida. Nesse despojamento experimentado e voluntário, a Igreja deve redescobrir a palavra que, em silêncio, incessantemente é dita por Deus.
AE – Então este silêncio quaresmal prepara a alegria pascal?
TM – O Profeta Oseias diz: eu vou levar-te ao deserto para falar-te ao coração. Esta passagem pelo deserto implica levar muito a sério a condição humana. O efeito da fé, em nós, não é automático. É uma construção. Os cristãos estão em construção. A Igreja está em construção. O tempo quaresmal diz-nos que estamos em obra, estamos num fazer-se e num tornar-se. Para que tal se concretize precisamos de re-orientar e converter a nossa vida.
Na tradição bíblica, a imagem do deserto está muito ligada à itinerância. Aqueles quarenta anos que o povo caminhou... Vamos ao deserto não para nos instalarmo-nos nele, mas para fazermos dele um caminho para essa novidade pascal. Para a grande alegria do Cristo, Homem Novo.
AE – É um «Sei que estou em viagem na palavra que se move» como disse o poeta Daniel Faria?
TM – Os cristãos estão no caminho. No entanto, é preciso estimular a nossa vida instalada e a própria Igreja instalada. A Quaresma é um tempo de grande estimulação para a itinerância. Não nos podemos esquecer que Jesus diz-nos: “Bem aventurados os sedentos”. Há uma sede e fome que é necessário re-aprender... Quem tem sede é que será saciado.
AE – Este tempo litúrgico é o oceano do silêncio.
TM – É uma grande viagem pelas ondas do silêncio... Como etapa provisória, a Quaresma não é um lugar, mas tempo de preparação. O definitivo é a Páscoa... A Quaresma é instrumental, mas é uma viagem necessária porque necessitamos de desprendermo-nos das amarras, dos bloqueios e dos comodismos. Só assim, conseguimos o coração novo que a Páscoa celebra.
AE – O silêncio oblitera os ruídos e bloqueios da sociedade?
TM – Ele é necessário para fugirmos ao nosso próprio ruído. O grande ruído não está na cidade, mas aquele que nós transportamos... É ressonância confusa que as coisas deixam dentro de nós. A Páscoa é um tempo de discernimento. É um tempo para treinar os sentidos. Com a Páscoa sentimos o perfume da vida. Escutamos a Palavra, como se fosse a primeira vez... Saboreamos o sentido profundo.
A Quaresma é um vitória sobre o ruído
AE – O lado anestésico do quotidiano deixa-nos tocar nessas profundezas?
TM - A Quaresma é uma vitória sobre o ruído que possibilita a Palavra inédita: a mensagem sobre o sepulcro vazio.
AE – O silêncio sente-se?
TM – Ele sente-se porque não é apenas ausência do ruído. Ele não se define pela negativa, mas pela positiva. O silêncio é o lugar da comunicação.
AE – É contemplação e comunicação?
TM – Basta observarmos os monásticos. O silêncio não é a privação da palavra, mas um caminho alternativo de intensa comunicação e escuta. O silêncio é um lugar...
AE – Que ajuda na conversão.
TM – É verdade. O silêncio é muito exigente. Se o mundo - à nossa volta e dentro de nós - é tão ruidoso é porque isso é muito mais cómodo. É mais fácil aguentar a palavra e o rumor do tempo do que se confrontar com o silêncio. Este tem uma verdade nua e sem véus. O confronto com o silêncio obriga a uma conversão. Obriga-nos a uma transformação que dói.
AE – É a matriz evangélica.
TM – Profundamente evangélica. Jesus – na forma de rezar e na preparação das grandes decisões – procurava o silêncio. Procurou o nível de comunicação mais profunda com o Pai.
AE – Os evangelhos são fruto do silêncio?
TM – Os evangelhos são uma poética do silêncio. Eles resultam de uma contemplação do mistério de Jesus Cristo.
AE – Que evangelista absorveu melhor a novidade silenciosa?
TM - É difícil dizer porque são quatro vozes distintas. De certa forma, são incomparáveis. No entanto, S. João tem um ritmo de escrita e uma forma de contar Jesus que nos endereça, continuamente, para o mistério e para o seu silêncio. O Evangelho de Marcos também está muito atento às dinâmicas do silêncio que é revelação. É conveniente lembrar a história rabínica que diz: “No fim dos tempos – quando o Messias voltar -, Ele não vai apenas explicar o sentido das palavras escritas mas explicará, também, o silêncio dos espaços em branco que existem entre as palavras”. Todos os evangelhos têm espaços em branco...
AE – A degustação do silêncio é a Ressurreição?
TM – Só quem degusta o silêncio – decantado pelo mistério pascal – pode verdadeiramente ressuscitar. O atordoamento do ritmo que se vive leva-nos a um grande afastamento. Por isso, a Quaresma é um reencontro marcado com o silêncio e com a luz que brilha com esse silêncio.
AE – É um rastilho que provoca um fogo pascal.
TM – Sem o itinerário quaresmal a Páscoa é apenas um rito, uma memória. Os cristãos são chamados a sentirem nas suas próprias vidas esse trânsito inesperado, mas que Jesus possibilita, da morte para a vida.
AE – Que começa com o pó de Quarta-Feira de Cinzas.
TM – Esse austero sinal que abre o itinerário quaresmal é extremamente importante. Obriga-nos a relativizarmo-nos a nós mesmos e coloca-nos em relação com um projecto maior que o nosso. Obriga-nos a calçarmos as sandálias dos peregrinos e tomarmos o coração dos sedentos. As cinzas convidam-nos a um grande silêncio interior.
AE – Depois desse período escuro encontra-se a primeira nascente.
TM – O mapa dado pelas cinzas conduz-nos à fonte pura.
AE – Os períodos de silêncio na Eucaristia também são momentos de diálogo com essa fonte pura?
TM – A Eucaristia salva e transfigura o próprio mundo. Mesmo celebrada entre quatro paredes apertadas, a Eucaristia é a exalação desse imenso silêncio.
O habitat do silêncio nas Palavras de Jesus
AE – Quando Jesus diz: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34), estas palavras nascem desse silêncio dialogante?
TM – A oração é algo de constante na vida de Jesus. Ele é um orante. O Evangelho de Lucas privilegia esse traço da vida de Jesus. Mostra-nos, por diversas vezes, Jesus a orar. Para orar, o silêncio é o habitat... É o meio vital. Lucas apresenta-nos, muitas vezes, no silêncio em diálogo com o Pai.
AE – Apesar desse diálogo orante, Jesus diz em Mateus 28, 46 «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?
TM – É interessante a forma como um exegeta francês contemporâneo defende que se traduza essa frase. Está relacionada com o modo como a tradução grega dos Setenta traduz o Salmo que Jesus reza na cruz. Ele propõe que se traduza: «Meu Deus, Meu Deus, a que me abandonaste». Não é apenas a interrogação de um destino que Jesus não entende, mas é também a explicitação de um mistério, de um destino, que engloba tudo aquilo que Jesus é e todo o projecto de Deus para a nossa salvação.
AE – «Tenho Sede!» (Jo 19, 28). É uma exclamação que deriva desse mistério silencioso?
TM – Só quem bebe da fonte do silêncio ganha essa sede. É uma sede do desejo e da entrega completa nas mãos do Pai. É uma das frases mais extraordinárias de Jesus.
AE – Por isso diz «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23, 46)» e «Tudo está consumado (Jo 19, 30)»
TM – Esse sentido de completude da vida supõe que o silêncio que nós somos mergulha no oceano do silêncio do mistério de Deus. Essa é a consumação. O silêncio no silêncio.
Como diz um poeta chinês: «O branco no branco»
AE – Depois desse «branco no branco» e da escada quaresmal aparece a vitória?
TM – Há uma vitória e uma Boa Nova. Há uma palavra inédita e original. Há a maior surpresa. Devido a isto, os cristãos são povo da manhã e do primeiro amanhecer. Celebramos o primeiro dia porque essa surpresa é o referencial que desloca o mundo. Nós organizamos o mundo a partir do primeiro dia da semana. Somos o povo do início.
AE – E acordamos «Com as narinas a sangrar um perfume (Daniel Faria)»
TM – Gosto da imagem do perfume porque é o símbolo da intensidade invisível. Na história, os cristãos sentem que o invisível está presente e se inscreve no provisório do tempo numa forma definitiva.
AE – Existem profissões do silêncio?
TM – As profissões ligadas à natureza são as menos mecânicas. São aquelas que se ligam ainda a uma lentidão. O silêncio é uma coisa lenta.
A grande tentação dos poetas é o silêncio
AE – Poesia e silêncio são dois conceitos interligados?
TM – A poesia é uma forma de escuta e de atenção. O silêncio é a metodologia de todos os poemas que se escrevem. A grande tentação dos poetas é o silêncio. A poesia exige uma vida tentada pelo silêncio. É uma forma de comunhão. A poesia não quer suprir o silêncio nem explicá-lo.
AE – Então o silêncio é o embrião da poesia...
TM – É embrião e o porto último. É a meta de todos os versos que se escreveram.
AE – Em estado poético voa-se na interioridade das palavras.
TM – Na poesia tenta-se – como se fosse a travessia das águas – atravessar sem ferir o mar. Para que no sossego das águas possamos ver o fundo, mas nem sempre isso é possível.
AE – Sendo duma localidade marítima (Machico – Ilha da Madeira), atravessa esse mar sem lhe tocar quando escreve poemas?
TM – A relação com o mar, e esse mundo que está ainda próximo duma linguagem original – antigas profissões, a ligação à terra e ao mar e a tradição oral -, suscita-me uma certa gramática do olhar.
AE – Depois dessa gramática do olhar nasce o azul poético?
TM – A poesia nem sempre é azul. Às vezes é escura e cerrada. A poesia não é um saber nem uma áurea. Não é um esplendor. Muitas vezes é uma noite escura. No entanto, a contemplação do mundo pede-nos uma procura.
O silêncio não tem cor
AE – O silêncio dessa contemplação é cromático?
TM – O silêncio não tem cor. Nós é que precisamos dessas cores. O silêncio é a vida nua... É a verdade. No entanto, precisamos da linguagem simbólica para viajarmos até à verdade.
AE – Um filósofo disse: «O poeta é o génio da recordação». Podemos afirmar também que o poeta é o génio da palavra nascida do silêncio?
TM – O poeta sabe que precisa de ouvir o silêncio.
AE – O misticismo é fruto do silêncio?
TM – A mística é uma experiência radical de silêncio. Uma das etimologias da palavra místico quer dizer fechado, estar trancado. A experiência mística é uma experiência de concentração.
AE - Eugénio de Andrade, Sophia Mello Breyner, Camilo Pessanha, Daniel Faria, Agostinho da Cruz e S. João da Cruz, poetas que ouviram o silêncio e deram-lhe voz. Destes, qual é o verdadeiro poeta do silêncio?
TM – Para mim o maior poeta e aquele que mais leio é S. João da Cruz.
AE – Miguel Torga percorria os trilhos do Gerês e da sua terra natal para absorver melhor o silêncio da natureza.
TM – Nós sentimos muito esse apelo: um regresso à natureza. A vida artificial e do ar condicionado é uma vida anti-espiritual. A vida do espírito é uma vida lenta e exige uma digestão. Ela exige o reencontro com os caminhos, com os baldios e com o mar aberto.
AE – Herberto Hélder via esse mar aberto constantemente?
TM – É um poeta de uma dimensão extraordinária. Herberto é um grande artífice do silêncio na poesia portuguesa contemporânea.
Cada um de nós tem a sua serra
AE – Sebastião da Gama e Agostinho da Cruz descobriram esse valor na Serra da Arrábida. Esta é a serra mãe para saborear a pausa silenciosa da vida?
TM – Na tradição portuguesa, a Serra da Arrábida é um lugar muito especial. Nesta serra encontramos tópicos da geografia do silêncio. Cada um de nós tem a sua serra onde encontrará o silêncio matricial.
AE – Também tem uma serra?
TM – Nas montanhas da Madeira ou junto ao mar, de qualquer lugar do mundo. Aí encontro uma certa qualidade de silêncio que me toca.
AE – O mar é ruidoso...
TM – O silêncio não é uma ausência. É a presença plena, inteira e intacta do mundo.
AE – Depois nasce a obra?
TM – Não nasce a obra. Nascemos nós. Mais importante do que a obra, mais importante do que o fazer é o ser. Nascemos... Estamos em nascimento, em dores de parto.
Pintar o silêncio
AE – Os pintores conseguem pintar o silêncio?
TM – Muitos pintaram-no. Fontana pintava o silêncio fazendo rasgões no cromatismo da pintura. Outro artista pintava o silêncio em grandes telas monocromaticamente (apenas com uma cor). Piero della Francesca pintava o silêncio através de personagens inesquecíveis. A forma como pintava o tempo dos personagens. O silêncio não se fixa.
AE – Não se fixa, mas conduz o pincel do pintor?
TM – O silêncio é o fio secreto que conduz todas as procuras de sentido. Podem ser artísticas, intelectuais, pastorais ou orantes. No fundo, a verdade é só uma. A verdade de um grande pintor é a mesma de um mestre da fé. É a verdade do grande mistério que nos coloca perante o silêncio de Deus.
AE – Há uma preparação específica para encontrar este fio misterioso?
TM – Na Quaresma, a Igreja recorda três caminhos: Jejum (relativização das reivindicações do nosso eu ); oração (escuta radical) e esmola (caridade). Muitos encontram o silêncio nesta forma porque nós não somos o centro do mundo.
AE – Depois deste caminho nasce a obra.
TM – O caminho quaresmal conduz-nos de facto a essa possibilidade da dança. Da dança dos eleitos. É essa alegria que vemos na célebre pintura de Frei Angélico, «A Roda dos Eleitos». Os anjos músicos e os eleitos com vestes maravilhosas celebram a alegria do Ressuscitado.
Bach falou com Deus
AE – A música ouve-se em silêncio ou transmite o silêncio?
TM – A música é uma poética do silêncio porque reconduz o nosso coração e a nossa atenção a um ponto nuclear.
AE – Numa orquestra existe o instrumento musical do silêncio?
TM – O instrumento do silêncio é o coração.
AE – No entanto, a harmonia sinfónica de alguns instrumentos musicais faz-nos entrar no mistério silencioso. Ouve-se o silêncio...
TM – Há compositores muito interessados em trabalhar esse silêncio. Só assim aparece a revelação.
AE – Qual o grande compositor que deu voz ao silêncio?
TM – Há um cineasta russo que afirma que Bach foi o último artista que falou com Deus. Não sei se foi o último, mas Bach falou com Deus.
Entrevistas Luís Filipe Santos Quaresma
Nenhum comentário:
Postar um comentário